terça-feira, 21 de maio de 2013

A PECAMINOSA DE N. 37




Embora a boa lição constitucional ministrada pelos constitucionalistas do país ensine que é proibido retroceder em matéria de garantias e direitos fundamentais, fica difícil compreendê-la ante o péssimo espetáculo a que se assiste no Congresso Nacional, identificado pelo egoístico e repugnante ataque ao poder investigatório do Ministério Público e, por efeito dominó, a todas as demais instituições chamadas de democráticas.
E o povo? O povo continua, nessa caríssima história de manipulações de poder, sendo aquele personagem que figura no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal, que diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição.”
Se ainda não houve razões para acreditar que o povo tem sido um grande figurante no suposto regime democrático que se divulga nos espaços jurídico, legislativo e executivo, a arquitetada investida contra o poder investigatório do Ministério Público, proveniente de representantes do titular desse poder popular, exemplifica como, ao mesmo tempo, o povo pode servir de justificativa axiológica para argumentos paradoxos.
Os que defendem a proposta de emenda constitucional n. 37/2011 afirmam que sua aprovação será melhor para o povo, aprimorando a qualidade da investigação criminal. Os que são contrários batem os pés, sacudindo toda a poeira dos milhões de inquéritos policiais inconclusos nas delegacias de polícia, sustentando que a não aprovação da PEC 37 será melhor para o povo, que já não aguenta mais tanta impunidade. A diferença é que esses últimos, nos seus argumentos, estão em conformidade com a Constituição.
Mas onde está o povo para decidir o papel que quer interpretar? Quantos compareceram à mobilização nacional contra a PEC 37 realizada no dia 24 de abril de 2013 em Brasília? Os dados se perderam. Literalmente, os dados se perderam e estão sendo jogados por uma única mão.
No espaço virtual, o compartilhamento de links contra a PEC 37 tem sido diário. Opiniões consagradíssimas sobre o assunto possuem vida própria na internet. Parabéns ao acesso em rede, ao compartilhamento de informações e aos cientistas da tecnologia. Mas a mobilização virtual é um complemento à mobilização presencial, e de forma alguma a substitui.  Os movimentos sociais não seriam movimentos sociais se ficassem apenas no ambiente cibernético. 
A PEC 37 é assustadora, tenebrosa e pecaminosa. Viola a ideia em si de Constituição. O Poder Constituinte Derivado Reformador, a quem cabe, através de emendas, aproximar as normas constitucionais da vivência social, tudo não pode. Possui limitações explícitas e outras que decorrem do próprio sistema constitucional. O Ministério Público é um direito fundamental do cidadão, que deve pensar assim: “eu tenho o impagável direito a uma instituição que defenda os interesses sociais e individuais indisponíveis.”
A PEC 37 é resultado de uma péssima interpretação de como deve atuar o Poder Constituinte Derivado, que, ao que parece, a todo custo, inclusive o de haver mais impunidade, quer restringir uma das atribuições institucionais do Ministério Público. O inciso IX da CF/88 bem recorda que cabe ao Ministério Público exercer outras funções que forem compatíveis com sua finalidade. A investigação criminal direta pelo Ministério Público, e isso já se sabe de há muito, é algo que corre nas veias institucionais. É do normal combate de quem sempre foi conhecido por atuar veementemente nos tribunais do júri do país, embora sua atuação não se reduza a esse ponto.
Portanto, a aberração da proposta de emenda constitucional n. 37 se dá ao tentar abolir, restringir o direito fundamental, estabelecido desde 1988, de se ter uma investigação criminal direta pelo Ministério Público. Isso é um pecado capital! Todos os direitos e garantias fundamentais previstos ou não no art. 5º da Constituição Federal necessariamente dependem de estruturas constitucionais que possam promovê-los. O Ministério Público, estabelecido minimamente no art. 127 da Constituição Federal, é uma delas, e por isso traz a essência fundamental de todos os direitos humanos inscritos naquele artigo. Restringir ou eliminar qualquer uma de suas atribuições constitucionais é restringir ou eliminar direitos fundamentais.
Seguindo essa lógica, a PEC 37 sequer deve ser objeto de deliberação. É o que impõe o art. 60,§4º, inciso IV, da Constituição Federal.  Registre-se também que a  iniciativa de um grupo de trabalho técnico para aperfeiçoar a PEC 37, integrada por quatro representantes do Ministério Público, quatro representantes da polícia, dois do Senado, dois  da Câmara de Deputados e um do Ministério da Justiça, aplaudida por muitos,  precisa ser analisada com bastante cuidado, pois pode-se estar legitimando, por vias aparentemente consensuais, a negociação do inegociável: a  investigação criminal pelo Ministério Público.
Não se defende aqui uma postura de guerrilha, terrorista ou de não diálogo. A perspectiva é outra, de constatação dos passos que estão sendo dados na resolução da questão. Há um caminho sinuoso e escorregadio ao se querer discutir formalmente um aperfeiçoamento de uma emenda constitucional que sequer pode ser objeto de deliberação; de aperfeiçoar uma proposta que visa restringir a atribuição de uma instituição eminentemente constitucional: o Ministério Público. É inconcebível a aprovação da PEC 37, e, pela mesma razão, inadmissível seu trâmite ou qualquer tentativa de, sob a rubrica de texto renovado, viabilizar sua aprovação.
Ao Ministério Público cabe promover a ação penal pública na forma da lei. Hoje essa é uma atribuição institucional fincada no texto da Norma Maior (art. 129, inciso I) e, muitas vezes, repetida nas faculdades de Direito sem o peso histórico que carrega. O cidadão já internalizou essa atividade ministerial. Talvez ainda não tenha percebido, com olhos arregalados, a perda e o retrocesso histórico, uma espécie mesmo de atavismo, que pode representar a aprovação da PEC 37.
O momento ainda permite sua aproximação a essa tema, que, mesmo sem se dar conta, bate à sua porta quando começa uma briga na vizinhança ou seu filho passa a consumir drogas ou trabalhar para o traficante da região, e o faz pensar: a quem devo recorrer nessas circunstâncias?
A PEC 37, conhecida como PEC DA IMPUNIDADE,  justamente porque pode impedir que outros órgãos, além do Ministério Público, realizem investigações , como a Receita Federal, a COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), o TCU (Tribunal de Contas da União), as CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito), entre outros, estabelece que “a apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1ºe  4º do art. 144 da CF/88 incubem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.”
Por sua vez, a PEC 33, entre outros desastres, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição.
Alguns humoristas arriscam piadas do tipo: PEC 33 + PEC 37= AI-5 - uma alusão ao ato institucional n. 5 da época da ditadura militar brasileira. Sorrisos à parte, é provável que, no ritmo e formato em que emendas constitucionais estão sendo propostas, a Constituição tenha uma data certa e próxima para o término da sua vigência, o que, sem dúvidas, será proposto por uma nova emenda (in) constitucional. Nesse cenário de loucuras legislativas, o surrealismo jurídico retoma sua força, mostrando que realidade e loucura já não andam tão distantes.
Curiosamente, nos últimos dias, a Argentina, através de questionáveis propostas de reforma do Judiciário (reformas nos chamados Conselhos da Magistratura, criação de três novas câmaras de cassação judicial e a imposição de novos limites para recursos), também se enfileirou entre os países que querem exercer um controle desproporcional sobre o Poder Judiciário. Lá, porém, a reação social foi mais calorosa. Aqui, um estado de compreensão diferenciado paira sobre a aura da sociedade em relação a essas iniciativas legislativas que desequilibram a comunicação existente entres os poderes instituídos. Que não seja uma tendência da famosa pós-modernidade!
A PEC 37 e a PEC 33 exalam odores pecaminosos, não no sentido religioso da palavra, mas como algo que surge na contramão da ordem natural das coisas, que é o evoluir da Constituição. As propostas de emenda, símbolos de atualização do texto constitucional, transformaram-se em descaminhos, em desfuncionalizações do poder constituinte derivado. PECs como estas reforçam a ideia de que “o pecado mora ao lado” e a sensação de que, como concluiu o filme Tropa de Elite 2, “o inimigo agora é outro.”  É ou sempre foi?
Fica a reflexão: ser contra a PEC 37 não significa ser contrário à polícia e favorável ao Ministério Público. A questão ultrapassa o círculo ideológico corporativista, mesmo sem desconsiderá-lo. Ser contra a PEC 37 é ser, em todas as análises possíveis sobre o tema, a favor da Constituição.

  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:Senado Federal, 1988.

CHAVES, Cristiano (Coord.); ALVES, Leonardo Barreto Moreira (Coord.); ROSENVALD, Nelson (Coord.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da constituição federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

JR. DA CUNHA, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed, Bahia: Editora Juspodivm, 2010.

Brasil contra a impunidade! Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/eventos/2013/marco/brasilcontraimpunidade/index.html>. Acesso em 11maio 2013.

Brasil contra a impunidade! Disponível em: <http://www.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=4889>.Acesso em 11 maio 2013

terça-feira, 30 de abril de 2013

OLHAR DISTRAÍDO



Nuvens gigantescas no céu
Separadas num fundo azul
Brancos algodões doces
Suspensos no ar seco
São fantasias ensolaradas
Que ironizam a sede do Oeste

Tanta doçura, tanta pintura
Nenhum pedaço doce do céu
Para cair na garganta seca
Do rapaz urbano que desconhecia
A aridez empoeirada do Oeste da Bahia

A vida aqui é sentida
A saudade da família vira coisa infinita
Os olhos se desviam dos lados
Onde a miséria tem barriga
E o céu tripudia
Com suas nuvens-fantasias

Nas chapadas diamantinas
O sol se esconde
Mas os cumes montanheses
Não protegem a pele curtida
Do humano comum de três dentes
Nem da criança de 05 anos
Acordada cedo para o batente

Um gole de cachaça
Para suavizar essa pirraça
Sol, Céu Azul, Nuvens Brancas
Nenhuma praia
E um mar de desgraças

No fundo azul do céu
Uma reposta de literatura de cordel
De nada adianta tanta esperança
Se a farsa política continua
E em cada parte do Oeste
Tem um Monarca que manda

Passa o vento, poeira levanta
Repete-se essa cena durante anos   
E o Oeste Baiano prossegue
Com seus Antônios e Conselheiros
À procura de revolucionários do desespero 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

FALTOU-LHE A PÍLULA MÁGICA






 Adorava ser beijado quando cumprimentado. Tinha só uma exigência. Umazinha só. Coisa pequena mesmo. Que o beijo realmente lhe fosse dado. Que os lábios da outra pessoa tocassem a pouca carne de seu rosto.

 Para compensar sua magreza natural, só mesmo beijos, muitos beijos, e de quebra abraços, ainda que viessem do Além.  Certa vez, num jantar de apresentações, a namorada de seu irmão mais velho lhe disse isso após duas taças de um vinho barato, encarecido pela nacionalidade chilena.

 Gostava também de ser abraçado. Tinha apenas dois pedidos. Que o abraço realmente envolvesse seu corpo. Que o abraço de preferência fosse dado por pessoas rechonchudas, gordinhas. Só assim a Providência seria justa consigo, colocando no seu caminho pessoas cheinhas para reanimar sua magreza de nascença. Coincidentemente, já que venerava os acasos da vida, esse sempre foi o critério determinante nas preferências afetivas de seu farto coração.  

Mas a ida ao psicólogo tinha sido provocada por um choque. Não aceitava o cumprimento que uma velha amiga de escola havia lhe dado quando encontrou com ela na Quitanda de Dona Violeta, no boêmio bairro Rio Vermelho.  Por isso, chegou ao consultório falando tudo. Antes mesmo que o especialista em mentes lhe perguntasse sobre o que conversariam hoje, disse: “ “Não acredito nisso.  Será possível? Joana fingiu ter me beijado. Logo ela, que tinha trocado bitocas comigo quando criança, que sabia de minhas exigências e que eu nunca resistia à tentação de um beijo colado no rosto, estalado mesmo, zuadento que nem buzina de caminhão. Antes um frio aperto de mão. Antes um esticar de sobrancelhas dizendo “olá”. Ou que fingisse, já que a proposta era fingir, não me conhecer. Achasse que eu, o velho “Fino de Cadeia”, como era conhecido por alguns amigos que gostavam de fumaça, estava gordo demais para ser comparado a um fininho de cadeia.  Não suportei essa dor. Agora estou aqui nesta consulta extra.”

O psicanalista, que no cartão profissional dizia ser freudiano, se atreveu um pouco e ultrapassou as linhas do tradicional umhummm, geralmente sofisticado por um vagaroso movimento de cabeça, e perguntou a Alexandre: - o beijo foi típico de novela?

Sem paciência para curiosas indagações, naturais de quem se debruça na janela para ver a banda passar, o nosso analisado respondeu: “não chegamos a esse nível. Perceba a sutileza. Ela fez que ia me dar um beijo. Inclinou o corpo. Antes, é verdade, saudou-me alegremente, cantarolando: fininho, fininho, fininho meu! E depois de se inclinar, quando eu ia sentir o prazer daqueles lábios gordos tocando a maçã de meu ossudo rosto, deixou uma brecha de vento entre a minha bochecha e a dela. Quem de longe via acreditava que ali houve um cumprimento real. Para mim, foi a falência, a bancarrota com ares de civilização pós-moderna. Até pensei em usar a palavra modernidade. Mas o termo da moda é pós-modernidade. Senti anos de consideração escoados por um não contato, um não toque, um nojo ou sei lá o quê encoberto vindo da minha amiga. A intuição me alertara: um empurrão do vento e eu teria sentido aquela satisfação de garoto, a delícia de ser calmamente beijado, desavergonhadamente quero dizer.”

- Por que não liga para ela?

- Não. É muita ousadia. No máximo, um e-mail.

- Tá bom, então. O entendimento dessa questão dependerá exclusivamente de você. Já se foram os 50 minutos. Continuaremos na próxima sessão.

 Alexandre, que ainda ostentava o porte do suspeito apelido Fino de Cadeia, deu uma cutucada na ira, e vazou na saída, ao passar pela silenciosa recepcionista, um pensamento natural de quem não se crê analisado: “não haverá próxima sessão. Você não sabe de nada, nem dos prazeres nas mínimas coisas. Vai se deitar com seu amado Freud para ver se ele te “froid” com essa história do prazer fálico. Nos meus 350 reais não toca mais, meu chefe. Umhummmmmm???? Cinco anos na faculdade para 50 minutos se revezarem em: “pode ser”, “depende de você”, “pensamento positivo”, “é o seu ponto de vista”, e tudo mais o que se encontra nos livros de autoajuda, exceto o umhummmmm. Tá aí. Descobri qual é a desses caras. Os 350 são só pelo umhummmmmm.”

Passadas duas semanas. Traumatizado com o encontro. Insatisfeito com a sessão. Libertou-se ao enviar um e-mail para sua antiga amiga, que embora não tivesse o romantismo primaveril das cartas dos primeiros anos de amizade, soletrava algumas batidas de coração:
“Jô, não sentir o toque de seus lábios foi demais para mim. Sei que me reconheceu com muita alegria. Mas onde estava a sua face? Por que não me beijou? Foi o curso de etiqueta? Nem as atuais senhoras retardatárias da Belle Époque ainda se cumprimentam assim.”

Em dois minutos a resposta chegou a seu celular: “ Que nada, fininho. Você continua o mesmo, né?! Um magro gorduroso de afetos. Não sei se percebeu. Fiz uma bariátrica. E ao te reencontrar e ver em você a magreza que sempre desejei, lembrei com  pêsames que você sempre foi fã das gordinhas. Como entregar o meu rosto ao seu nessas circunstâncias? A minha solução foi o quase chegar lá.  Quase cheguei a te beijar, mas em compensação te cobri de abraços.”

Continuou tomando sua cerveja. Compenetrado na mini tela do genial aparelho telefônico, desligado das outras pessoas da mesa, como se fosse a única gota de chuva a cair do céu, postou a seguinte mensagem: “Incompreensível mesmo. As pessoas sempre reinventando formas para não se cumprimentarem.” O ponteiro ainda não tinha feito o seu movimento circular, e 11 pessoas haviam curtido o comentário.  Em seguida, intimou diretamente a gordinha da mesa ao lado como se ela soubesse de sua tormenta e tivesse uma obrigação natural de acatar o seu próximo pedido: “Quer me beijar?”. Com o NÃO respondido, guardou o entendimento há semanas esperado. Não era só uma questão de cumprimento. Na verdade, a sua primeira ânsia de ser amado ainda não tinha passado. De repente, o psicanalista voltou ao fim desta história e lhe importunou com uma fria e antiterapêutica solução: E por que então não tomou logo o RIVOTRIL quando percebeu que o pânico de ser amado voltaria?




sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

NA POLTRONA




O amor não tem orientação sexual. Pensou nessa afirmação como quem abraça as bordas do mundo. Os anjos não têm sexos. Lembrou-se dessa frase como quem aprecia “a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida”. Queria dizer, e disse reinventando aquele clichê, que o amor revela todas as orientações sexuais possíveis, inclusive as que surgirão. Era ideia certa isso. Afinal, dois homens se beijaram na porta de entrada do universo XXI. Beijo de canto de boca, com a língua recolhida na discrição. Mas era um beijo entre iguais igualmente a um beijo entre diferentes.  Viu também que, devido a essa novidade greco-romana, a fanfarra abriu o desfile mais cedo. E o bloco dos mascarados foi surpreendido com fantasias de carne e osso, se exibindo na Avenida dos anos, em plena luz do dia, com semblantes reais. Nada a esconder. Não havia porquês. Nova Era. Foi o que o jornal da manhã logo cedinho publicou.

Três mulheres, vestidas de colegiais, fizeram uma ciranda de toques. Rodavam, rodavam, rodavam e, na tontura desejada, sentiram os peitos- seus peitos- eriçados de uma adrenalina lubrificante. Quase se conheceram. Como estavam de costas, um morador que descia as escadas não percebeu a cena. Comentou lá embaixo: - há três meninas brincalhonas no 5º andar.  Enquanto isso, gargalhadas vinham do terraço, onde as parabólicas serviam de hastes para estender a linha do tempo à rede do Universo Paralelo, onde as antigas mães daquelas moças quase entendidas conversavam ardentemente, experimentando uma na língua da outra a bebida mais quente da grande Onda: o prazer. E faziam isso na moral, na limpeza, sem externalidades libertadoras, já que o programa Tolerância Zero não tinha sido autorizado pelo Governo. Foi o que o Pasquim da esquina divulgou na página Cotidiano.

A gente humilde ficou espantada com a notícia. A classe média envaideceu-se ao saber que isso era real. Não fazia parte de um capítulo de minissérie. Que estava sendo protagonista de jornais avulsos, degustada por leitores de diversas ordens morais. Os tarados reclamaram: isso lá é coisa que se publique! Notícia velha, porra! Os abonados foram previsíveis: reuniram-se às 17:00h para debater a notícia sob os fundamentos do Darwinismo Social.

 O estardalhaço coube à mídia internacional. Le monde, New York Times e a BBC News depositaram a verdade nas capas. Foram tão objetivos que fizeram pouco caso da exclamação. Anunciaram: “transexual da década de 30 se torna famoso por prever que no século XXI a humanidade seria reconhecida pelo formato de seu Desejo.” Para a tropicália, nenhuma novidade; desde essa época eles - eles mesmos, sim são eles sim, eles mesmos - se perguntavam: “Eu sou neguinha?”.
O menino escuro estampado na capa do Populacho agradeceu pelo dia de boas vendas. Podia ser visto por muita gente. A fama tinha fornicado sua alma com glória infernal. O menino escuro da banca “Ponto de Referência” também rendeu Graças ao dia – Aleluia, Aleluia, imitando sua cliente religiosa. O almoço estava garantido.

No fim da manhã, ele, o personagem vivo das notícias lidas, o metalingüista profissional, que começou a leitura diária com afirmações sexuais inconvenientes sobre o amor, resolveu dobrar os jornais e, antes de sair da Internet, enviar algumas frases para o espaço dedicado ao Leitor. Pensou também em escrever uma carta de demissão. Mas para quem? Estava aposentado. Ainda assim insistiu por sete minutos nessa ideia. Para ele, a carta seria uma bela forma de expressar sua revolta. Seria como desenrolar espontaneamente aquele mal de infância chamado de língua presa.

Cansado de ler, sentiu que o tempo havia passado. Olhou para a xícara que estava no braço da poltrona e resmungou: merdaaaa, café frio não presta! Quando ia se levantar, uma pergunta colou-lhe a bunda no estofado e, antes que a esposa ouvisse seu segredo, se confessou para o espelho da mobília próxima: Qual a igualdade me perturba mais? Eu e um conhecido ou Eu e a turba bárbara que “pela lente do amor não pode enxergar toda moça em todo rapaz ou vice-versa”

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

IGUAIS: ELES OU ELAS


 
 
Pensam
Desejam-se
Tocam-se
Amam-se
Desta vez, os opostos não se atraem

Afastam-se
Choram
Gritam
Acenam timidamente
Mudam de calçada
Piscam os olhos
Disfarçam seus desejos reais

Ousam
Rebelam-se
Beijam-se
Atraem-se
Identificam-se iguais
Sentem-se perfeitos
Querem-se mais

Na cama
Conversam
Desabafam
A intimidade sentida
Na igualdade dos sexos
Na semelhança que os atraem

No próximo ato
Amam-se mais um pouco
Declaram frases ocultas
Banham-se de suor
E experimentam o gozo
Até gritarem de felicidade:
- Não somos culpados pelo nosso amor
Apenas somos iguais

sábado, 26 de janeiro de 2013

EusTONTEANTES

 

No exílio do Eu
Conjuga-se o verbo ser
Para que a ligação do presente ao passado
Não turve o futuro
Que também É no tempo da imaginação
 
 
No exílio do Eu
A ilha chamada coração
Com sua batida nervosa
Geme para o mundo
A dor de ter o outro dentro de si
Num silêncio agressivo
Quase vocal
 
No exílio do Eu
Choram outros Eus
Sentados nas pedras do Existir
Observando-se a irônica arte
De sorrir para a lágrima
Que seca uma tristeza bandida
Cruel perturbadora
De mentes adormecidas
 
No exílio do Eu
Ouço a Voz
Eu ouço a voz aveludada de Gil
Que sem giz
Ensina o velado Veloso que há em Nós
Recitando a fraternidade amiga
Desatando nós
 
 
No exílio do Eu
Que também é multidão de ideias
Eco divino de criação
Visita-se o útero materno
Relembra-se o leite quente
Ouve-se a forte voz paterna
Que bloqueia o impulso infantil
 
 
No exílio do Eu
Um dia passa segundo a segundo
Ou conforme o ritmo dos segundos
Ou se transporta na velocidade de um segundo
Descobrindo-se máscaras carnavalescas
Num festival de intenções
 
No exílio do Eu
Sente-se a tessitura da alma
Experimenta-se um estádio decantado
Bebe-se uma cachaça destilada de ideias
Relaxa-se, enfim, sob a folhagem da solidão
Que projeta na terra as sombras pequenas
De pensamentos desconhecidos
 
 
E embora associado à soledade
Compartilha-se o exílio do Eu
Com outros Eus ilhados
Que desejam ardentemente
Dentro de nós ser Nós
Um Eu amigo do Coletivo
Uma unicidade plural
Ser Nós, Ser Nós
Ser Eu, Ser Eu
 
Só dependendo de uma conexão
De uma balsa simples
De um balseiro acolhedor
Do nosso mundo interior
Neural
Visceral
Astral
Normalmente anormal
 
 
De um balseiro acolhedor
Do nosso mundo exterior
Repleto de conselhos modais
Dicas supostamente morais
Que escondem suas vergonhas
No caro verniz revendido
Pelos falsos Sidartas da Modernidade
Mercadores de palavras sucateadas
 
Real ou invenção
No exílio do Eu
Faz-se a travessia existencial
Colocando-se as vírgulas sentidas
Nem sempre gramaticais
No texto improvisado pelo destino
Meditando-se nas curvas reflexivas
Da estrada chamada vida
E o poeta Pessoa
Refém da Floresta do Alheamento
Já sabia disso
 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

As horas ...



Na cama, esperando as horas seguirem para o ponteiro final, sendo consumido pelo desnecessário na inércia distante do ócio criativo. Livros no chão, computador desativado, cartas de baralho perdidas, sem ereção fundamental, pornografias repetidas, chamadas telefônicas no “mute” e as redes sociais - pescadoras de solitários - congestionadas. Mãos no bolso esquerdo. Agora, no direito. Encontra-se a bússola.  Mais uma vez partida. Sinal que as direções estão tortuosas. A cama é o melhor local para resistir à lentidão das ruas, suportar a falta de diversão e sentir a inexistência de barulho. Os escritores finalizaram suas histórias e dormem em sono estranho. As horas partirão em viagem de qualquer jeito. Dessa vez, a literatura não conseguirá frear a inevitabilidade do consumo do Em Si que absorve o humano. As horas tomarão seu rumo, ainda que se mexa na ampulheta do jogo Imaginação. Aliás, quem não brincou de Imagem/Ação quando criança? É só uma pergunta. O relógio é a ideia perfeição do tempo.  As horas se completam. São precisas, exatas e responsáveis. Fecham duas, três ou quatro horas, a depender do compromisso marcado, a obedecer à regra do dia. As horas ficam registradas na mente e, por isso, mentem, engabelando os sistemáticos, lhes retirando a tardia noção de que o tempo é fugidio, um sabão molhado nas mãos do apressado em ver espumas. As horas ficam. O tempo se esvai. Vai-se o tempo. Fica-se o tormento, a infinita reflexão sobre o Carpe Diem. O que corre sem retorno é o agora. Sem finalidade própria, acho que sim, esperar as horas. Sem sentido mesmo, porque já se sabe o fim dessa conversa impontual: a cama. Simplesmente a cama com seus lençóis limpos, lavados com o melhor amaciante, que tristemente frustrou as saborosas lembranças de um sexo visceral.  Às vezes, o Kama Sutra é melhor na literatura, porque ao se ter algumas sombras como companheiras de um dos lados da cama, as figuras coloridas impressas no guia de sexo da humanidade são mais animadas. Não adianta lutar contra esse estado psicológico. Aos poucos, ele partirá com as horas. Devagarzinho, engatinhando, tropeçando no nascer de outros sentimentos. O melhor será esperar a passagem. As horas passarão. O navio singrará no verde mar, despistando, através de caminhos de ondas, as profundezas belas do mundo aquático. Levando consigo as horas perdidas, chamadas de saudade para os que ficam.  Precisa-se de fé ou resignação. Ou um pouco de algo que anda na ponte que liga essas duas coisas maleáveis, variantes, manipuláveis e altamente usadas como elixires para as ressacas de culpas e desacertos. Já sei: deve-se aceitar o radicalismo astral da Criação ao determinar que domingo é domingo, dia de tédio, de algumas refeições em família e orla lotada de domingueiros andantes. Domingo é domingo, mesmo que seja véspera de 31 de dezembro de um ano qualquer, e toda a cidade tenha comprado fogos de artifício para celebrar a esperança global, previsível nas mentes de leitores da Sorte, alumiados por candeeiros enferrujados e suspensos sobre suas gigantes cabeças com fios velhos, cortados e retirados da central elétrica da cidade: a televisão.