Embora a boa lição
constitucional ministrada pelos constitucionalistas do país ensine que é
proibido retroceder em matéria de garantias e direitos fundamentais, fica
difícil compreendê-la ante o péssimo espetáculo a que se assiste no Congresso
Nacional, identificado pelo egoístico e repugnante ataque ao poder
investigatório do Ministério Público e, por efeito dominó, a todas as demais
instituições chamadas de democráticas.
E o povo? O povo
continua, nessa caríssima história de manipulações de poder, sendo aquele
personagem que figura no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal,
que diz que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição.”
Se ainda não houve
razões para acreditar que o povo tem sido um grande figurante no suposto regime
democrático que se divulga nos espaços jurídico, legislativo e executivo, a arquitetada
investida contra o poder investigatório do Ministério Público, proveniente de representantes
do titular desse poder popular, exemplifica como, ao mesmo tempo, o povo pode
servir de justificativa axiológica para argumentos paradoxos.
Os que defendem a
proposta de emenda constitucional n. 37/2011 afirmam que sua aprovação será
melhor para o povo, aprimorando a
qualidade da investigação criminal. Os que são contrários batem os pés,
sacudindo toda a poeira dos milhões de inquéritos policiais inconclusos nas
delegacias de polícia, sustentando que a não aprovação da PEC 37 será melhor
para o povo, que já não aguenta mais
tanta impunidade. A diferença é que esses últimos, nos seus argumentos, estão
em conformidade com a Constituição.
Mas onde está o povo
para decidir o papel que quer interpretar? Quantos compareceram à mobilização
nacional contra a PEC 37 realizada no dia 24 de abril de 2013 em Brasília? Os
dados se perderam. Literalmente, os dados se perderam e estão sendo jogados por
uma única mão.
No espaço virtual, o
compartilhamento de links contra a PEC 37 tem sido diário. Opiniões consagradíssimas
sobre o assunto possuem vida própria na internet. Parabéns ao acesso em rede,
ao compartilhamento de informações e aos cientistas da tecnologia. Mas a
mobilização virtual é um complemento à mobilização presencial, e de forma
alguma a substitui. Os movimentos
sociais não seriam movimentos sociais se ficassem apenas no ambiente
cibernético.
A PEC 37 é assustadora,
tenebrosa e pecaminosa. Viola a ideia em si de Constituição. O Poder
Constituinte Derivado Reformador, a quem cabe, através de emendas, aproximar as
normas constitucionais da vivência social, tudo não pode. Possui limitações
explícitas e outras que decorrem do próprio sistema constitucional. O Ministério
Público é um direito fundamental do cidadão, que deve pensar assim: “eu tenho o
impagável direito a uma instituição que defenda os interesses sociais e
individuais indisponíveis.”
A PEC 37 é resultado de
uma péssima interpretação de como deve atuar o Poder Constituinte Derivado, que,
ao que parece, a todo custo, inclusive o de haver mais impunidade, quer
restringir uma das atribuições institucionais do Ministério Público. O inciso
IX da CF/88 bem recorda que cabe ao Ministério Público exercer outras funções
que forem compatíveis com sua finalidade. A investigação criminal direta pelo Ministério
Público, e isso já se sabe de há muito, é algo que corre nas veias
institucionais. É do normal combate de quem sempre foi conhecido por atuar
veementemente nos tribunais do júri do país, embora sua atuação não se reduza a
esse ponto.
Portanto, a aberração
da proposta de emenda constitucional n. 37 se dá ao tentar abolir, restringir o
direito fundamental, estabelecido desde 1988, de se ter uma investigação
criminal direta pelo Ministério Público. Isso é um pecado capital! Todos os
direitos e garantias fundamentais previstos ou não no art. 5º da Constituição
Federal necessariamente dependem de estruturas constitucionais que possam
promovê-los. O Ministério Público, estabelecido minimamente no art. 127 da
Constituição Federal, é uma delas, e por isso traz a essência fundamental de
todos os direitos humanos inscritos naquele artigo. Restringir ou eliminar
qualquer uma de suas atribuições constitucionais é restringir ou eliminar
direitos fundamentais.
Seguindo essa lógica, a
PEC 37 sequer deve ser objeto de deliberação. É o que impõe o art. 60,§4º,
inciso IV, da Constituição Federal. Registre-se também que a iniciativa de um grupo de trabalho técnico
para aperfeiçoar a PEC 37, integrada por quatro representantes do Ministério
Público, quatro representantes da polícia, dois do Senado, dois da Câmara de Deputados e um do Ministério da
Justiça, aplaudida por muitos, precisa ser
analisada com bastante cuidado, pois pode-se estar legitimando, por vias
aparentemente consensuais, a negociação do inegociável: a investigação criminal pelo Ministério Público.
Não se defende aqui uma
postura de guerrilha, terrorista ou de não diálogo. A perspectiva é outra, de
constatação dos passos que estão sendo dados na resolução da questão. Há um
caminho sinuoso e escorregadio ao se querer discutir formalmente um
aperfeiçoamento de uma emenda constitucional que sequer pode ser objeto de
deliberação; de aperfeiçoar uma proposta que visa restringir a atribuição de
uma instituição eminentemente constitucional: o Ministério Público. É
inconcebível a aprovação da PEC 37, e, pela mesma razão, inadmissível seu
trâmite ou qualquer tentativa de, sob a rubrica de texto renovado, viabilizar
sua aprovação.
Ao Ministério Público
cabe promover a ação penal pública na forma da lei. Hoje essa é uma atribuição
institucional fincada no texto da Norma Maior (art. 129, inciso I) e, muitas
vezes, repetida nas faculdades de Direito sem o peso histórico que carrega. O
cidadão já internalizou essa atividade ministerial. Talvez ainda não tenha percebido,
com olhos arregalados, a perda e o retrocesso histórico, uma espécie mesmo de
atavismo, que pode representar a aprovação da PEC 37.
O momento ainda permite
sua aproximação a essa tema, que, mesmo sem se dar conta, bate à sua porta
quando começa uma briga na vizinhança ou seu filho passa a consumir drogas ou
trabalhar para o traficante da região, e o faz pensar: a quem devo recorrer
nessas circunstâncias?
A PEC 37, conhecida
como PEC DA IMPUNIDADE, justamente
porque pode impedir que outros órgãos, além do Ministério Público, realizem
investigações , como a Receita Federal, a COAF (Conselho de Controle de
Atividades Financeiras), o TCU (Tribunal de Contas da União), as CPIs
(Comissões Parlamentares de Inquérito), entre outros, estabelece que “a apuração
das infrações penais de que tratam os §§ 1ºe
4º do art. 144 da CF/88 incubem privativamente às polícias federal e
civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.”
Por sua vez, a PEC 33,
entre outros desastres, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas
pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão
sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição.
Alguns humoristas
arriscam piadas do tipo: PEC 33 + PEC 37= AI-5 - uma alusão ao ato
institucional n. 5 da época da ditadura militar brasileira. Sorrisos à parte, é
provável que, no ritmo e formato em que emendas constitucionais estão sendo
propostas, a Constituição tenha uma data certa e próxima para o término da sua
vigência, o que, sem dúvidas, será proposto por uma nova emenda (in)
constitucional. Nesse cenário de loucuras legislativas, o surrealismo jurídico
retoma sua força, mostrando que realidade e loucura já não andam tão distantes.
Curiosamente, nos
últimos dias, a Argentina, através de questionáveis propostas de reforma do
Judiciário (reformas nos chamados Conselhos da Magistratura, criação de três
novas câmaras de cassação judicial e a imposição de novos limites para
recursos), também se enfileirou entre os países que querem exercer um controle
desproporcional sobre o Poder Judiciário. Lá, porém, a reação social foi mais
calorosa. Aqui, um estado de compreensão diferenciado paira sobre a aura da
sociedade em relação a essas iniciativas legislativas que desequilibram a
comunicação existente entres os poderes instituídos. Que não seja uma tendência
da famosa pós-modernidade!
A PEC 37 e a PEC 33 exalam
odores pecaminosos, não no sentido religioso da palavra, mas como algo que
surge na contramão da ordem natural das coisas, que é o evoluir da
Constituição. As propostas de emenda, símbolos de atualização do texto constitucional,
transformaram-se em descaminhos, em desfuncionalizações do poder constituinte
derivado. PECs como estas reforçam a ideia de que “o pecado mora ao lado” e a
sensação de que, como concluiu o filme Tropa de Elite 2, “o inimigo agora é
outro.” É ou sempre foi?
Fica a reflexão: ser
contra a PEC 37 não significa ser contrário à polícia e favorável ao Ministério
Público. A questão ultrapassa o círculo ideológico corporativista, mesmo sem
desconsiderá-lo. Ser contra a PEC 37 é ser, em todas as análises possíveis
sobre o tema, a favor da Constituição.
REFERÊNCIAS
BRASIL.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF:Senado Federal, 1988.
CHAVES,
Cristiano (Coord.); ALVES, Leonardo Barreto Moreira (Coord.); ROSENVALD, Nelson
(Coord.). Temas atuais do Ministério
Público: a atuação do parquet nos
20 anos da constituição federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.
JR.
DA CUNHA, Dirley. Curso de Direito Constitucional.
4ª ed, Bahia: Editora Juspodivm, 2010.
Brasil contra a
impunidade!
Disponível em: <http://www.mpba.mp.br/eventos/2013/marco/brasilcontraimpunidade/index.html>.
Acesso em 11maio 2013.
Brasil contra a
impunidade!
Disponível em: <http://www.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=4889>.Acesso
em 11 maio 2013